quarta-feira, 22 de abril de 2020

O falso centro

A ilusão de confiar que você é uma pessoa carrega sempre o peso da necessidade de pessoas. Vou colocar melhor: o que uma pessoa precisa para ser feliz? Ela precisa de amizade, de gratidão, de reconhecimento... Ela tem um milhão de necessidades!
O corpo é só uma aparência e a ideia de um centro presente na experiência da vida é só uma imaginação que não tem substância, não carrega nenhuma forma de realidade. É um centro aparente dentro de um corpo aparente! O pensamento cria a ideia de uma pessoa presente, e, se “eu” sou uma pessoa, “eu” preciso de coisas que as pessoas precisam. Então, o que as pessoas querem? É o que “eu” quero! De uma forma prática, aqui está a diferença entre estar em Felicidade e viver em miséria.
Enquanto essa ilusão de que você é uma pessoa estiver presente, essa procura por alguma coisa sustentará a miséria. A percepção está presente, mas a ilusão é que tem um centro nela! Por exemplo, neste momento, a sensação aí é a de que existe um centro de percepção ouvindo essa fala. Repare como é muito mágica essa brincadeira divina! Existe aí uma sensação de que há um centro experimentando percepções auditivas, visuais, sensitivas, não é assim? Essa sensação é imaginária, do próprio pensamento, pois esse centro não existe! Esse sentido de pessoa está sustentando esse centro, o qual sustenta o sentido de pessoa, que está em busca de alguma coisa. Repare como acontece essa mágica da egoidentidade! Absolutamente, não existe nenhum centro de experiência aí ou aqui! Não há um centro! Não há alguém falando ou alguém ouvindo, não há um experimentador e uma experiência particular acontecendo! Eu tenho procurado de diversas formas lhe mostrar isso, o truque, toda a magia.
Quando você sonha à noite, a ideia é de que há você ali e um mundo ao seu redor, onde as experiências estão acontecendo. Assim, a ideia é de que aquele mundo é real e você é o personagem central em toda aquela experiência. Esse centro ilusório sustenta a realidade de um mundo externo presente em volta dele. No entanto, quando você acorda, você percebe que não havia nenhum centro de experiência! Todas as aparições no sonho não estavam acontecendo para um centro de experiência presente.
Agora, neste instante, a ideia que você tem é a de que você é um centro vivendo experiências que estão acontecendo. Quando saiu do sonho e acordou de manhã, você percebeu que aquele mundo e você eram uma coisa só. Que diferença havia entre você dentro do sonho e o que estava acontecendo no sonho? Quando você acorda, vê alguma diferença? Você não percebe que tanto aquele que estava vivendo o sonho quanto o próprio sonho eram uma coisa única? Há diferença entre alguém vivendo o sonho e o próprio sonho? Agora que você está acordado, você pode separar o sonhador – aquele personagem com episódios acontecendo em volta dele – do próprio sonho? Você pode separar aquela “pessoa” que você acreditava ser no sonho do próprio sonho em volta? Por exemplo, no sonho você estava caminhando em uma estrada, ouvindo uma música, e agora você acordou. Ao se lembrar do sonho, não vê que ele e você tinham a mesma qualidade? Você, o caminhar e a estrada não eram feitos do mesmo material? Havia ali um centro de experiência ou só uma experiência sem centro? O material da estrada não era o mesmo material daquele corpo, do som escutado e do caminhar? Tudo o que aconteceu no sonho, inclusive sua própria presença nele, não era de um material criado, imaginado e produzido pela própria mente? Então, é possível separar o vento soprando naquela estrada onde você caminhava, o caminhar, você mesmo e o som da música? É possível se dizer que havia um centro que, separadamente, percebia a experiência? Agora, aqui, acordado, você diz que havia um centro percebendo aquilo ou nota que havia um todo, uma imagem, um filme acontecendo?
Devoto: Você tem alguma consciência de um observador no sonho?
Marcos Gualberto: Você tem consciência de um observador agora, aqui? É como acontece no sonho. Agora, o que é esse observador? Ele está separado desta experiência? Você pode separar quem escuta daquilo que escuta? Você pode separar aquilo que é visto daquele que vê? Se não pode, onde está esse centro? Se você tirar o objeto observado, para onde vai o observador? Se você tirar a música de quem escuta, para onde vai esse que escuta? Então, ficou mais fácil agora perceber que não existe um centro de experiência, que somente existe a experiência se houver um experimentador. Não há nenhum centro agora, aqui! Percebe que não existe nenhuma pessoa agora aí? Existem só as sensações físicas, térmicas, auditivas e visuais surgindo e desaparecendo, certo? Se, após esse passo a passo, isso ficou compreendido aí, eu posso entrar naquilo que falei no início: enquanto o sentido de pessoa estiver presente, haverá a necessidade de coisas. Lembra? As coisas da “pessoa”. Mas, o que essa “pessoa” necessita se ela não existe? Perceba que a “pessoa” é a imaginação de um centro vivendo experiências. Perceba que a “pessoa” é uma ficção criada pelo pensamento, vivendo uma vida própria, tendo experiências particulares e precisando de coisas.
Então, qual é o segredo da Meditação? Ver que os sentimentos ou pensamentos acontecendo agora não possuem um centro particular. Compreende isso? O pensamento, o sentimento e a sensação presentes não possuem um centro particular para manejá-los, para gerenciá-los. Então, se você apenas permanece sem esse centro, que é esse controlador, não tem como ser infeliz, como ser miserável. E por que não? Porque você não está mais aí exigindo alguma coisa. Está claro isso? Essa exigência que você tem é o que o torna miserável, porque é isso que sustenta esse “centro” sempre infeliz, sempre insatisfeito. É isso que cria o senso de separação, o ego, que o mantém fora do seu Natural Estado, que é Consciência, que é Ser.
Basta um pensamento sustentado aí como verdade para esse “centro” permanecer miserável. Basta apenas um pensamento! O falso centro está no pensamento que diz “eu”, “mim”, com todos os sentimentos e emoções associados a ele. Vou colocar de forma mais simples ainda: se o pensamento surge, já está subentendido que é para um “centro”, para um “eu”. Se você desacredita, se você não sustenta esse pensamento, esse falso centro não tem como prevalecer e continuar. Não é que primeiro exista o “eu” e depois o pensamento; já está subentendido que o pensamento carrega um “eu” presente, um centro imaginário. O próprio pensamento já vem por esse hábito!
Por que para um Ser Realizado é muito leve permanecer sem pensamentos? Porque isso já não encontra uma sustentação de “centro”, um alimento para um centro ilusório. Então, o que difere o Estado Natural do estado do homem comum, nessa relação com o pensamento? Veja, o pensamento acontece para o homem comum e para o Sábio, mas este carrega uma leveza, por quê? Porque esse centro imaginário já morreu de fome! Ele desapareceu por não ter comida! Ficou tanto tempo sem comer que morreu! Quando o pensamento aparece para o Sábio, é só um fenômeno existencial, mas, para o homem comum, que vive sempre alimentado esse falso centro, isso é a verdade.
Então, o Sábio vive em Felicidade porque ele não tem aquilo que sustenta a busca, a procura constante da “pessoa”. Assim, o pensamento acontece para Ramana, Buda, Jesus e Gualberto? Sim. Mas, esse centro imaginário, em torno do qual e para o qual experiências acontecem, já não existe mais! Dessa forma, os pensamentos são apenas um fenômeno, uma aparição sem importância pessoal, porque não há “pessoa”; sem a importância para um “centro”, porque ele já não está mais presente como imaginação.
*Transcrito de uma fala ocorrida em 25 de Fevereiro de 2020, num retiro na Ilha de Itamaracá/PE.
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